quinta-feira, 27 de maio de 2010

Galope



O gato miava desesperadamente, um miado constante, eu não sabia se terminava o cigarro, se jogava, fora, o ultimo cigarro que eu tinha, se matava o gato, ou se pegava ele no colo, dando algum tipo de carinho, mas eu não queria, eu não queria dar carinho a ninguém, mas ele insistia, e eu gritava, com a boca cheia de fumaça, desesperada com o desespero do miado dele. O que fazer? Era um dia maluco, eu não havia comido nada, a casa estava vazia e o gato miava, me deixando mais enjoada do que a falta de comida no estomago, a tontura, eu não sabia se era por causa do cigarro, do miado, dele, da casa vazia ou da falta de comida. Era um ser sedento de carinho, implorando para alguém que não poderia dar o que ele queria. Eu não queria. Eu só queria fumar meu ultimo cigarro em paz deitar novamente na minha cama, com o meu corpo desajeitado, ler meu livro, e assim terminar o dia. Mas tudo aquilo dentro de mim começou a sufocar, e tantas outras coisas começaram a surgir na minha cabeça, coisas que eu não queria lembrar, coisas que eu não queria pensar, que a muito eu tenho socado para um canto escuro dentro de mim, que me faziam mal, que embrulhavam meu estomago. Por um momento, peguei o que parecia ser uma lâmina de barbear enferrujada, e fiquei ali, ouvindo o miado, sentindo o enjôo, e olhando para a lâmina em minhas mãos pensando que eu poderia acabar com aquilo tudo naquela hora, matar ele, com um corte na garganta, fingindo dar carinho. Mas eu sabia que não conseguiria. Como não havia conseguido tantas outras coisas. Pensei estar louca. Devo estar louca. Larguei aquilo que parecia uma lamina, o cigarro acabou, corri para o quarto com as mãos tapando os ouvidos, fechei os olhos, como se esse ato fizesse tudo acabar, eu esperava tudo acabar. Foi quando ele chegou, abriu a porta, e eu, encerrada no quarto, larguei um grito estridente, sentindo apenas seu corpo envolto ao meu, me embalando, dizendo que estava tudo bem, eu ainda não abrira os olhos, receosa, um animal ferido sem caminho a seguir, mas eu sabia que era ele, e embora eu ainda tivesse mágoa de todas as coisas que haviam acontecido, não podia recuar, simplesmente me soltar dos seus braços, porque era ali que eu queria estar, bem, nos seus braços, acalentada. Permanecemos assim durante um tempo, em silêncio. Apenas envoltos. Eu queria perguntar todas as coisas que eu tinha guardado, e que nas cartas nunca consegui escrever, embora fizesse tanto tempo desde a ultima que eu havia mandado. Sempre esqueci de trocar a fechadura, sempre deixei pra depois, e depois e depois, como tudo. Também nunca pensei que ele pudesse, então, tornar a abrir essa mesma porta pela qual ele se foi, me deixando aos prantos, sozinha, gata solitária, desamparada, numa madrugada fria de junho. As explicações vieram dele, ou melhor, não foram explicações, foram lamentações, pedido de ajuda, clemência. Abri os olhos e avistei aquele rosto angelical, feito criança, sempre teve esse rosto angelical, só que agora tinha um resquício de barba mal feita, passei a mão direita lentamente sobre o seu rosto, sentindo a aspereza da superfície que durante muitas manhãs eu beijava, com muito amor, amor que um dia eu tive, amor que eu não sabia aonde se encontrava, estava entalado, preso, sufocando em algum porão minúsculo. Ele pediu pra ficar, disse tantas outras coisas, coisas que eu não conseguia ouvir, só observar, observar, nada mais daquelas coisas me importavam, eu o aceitaria de volta sem discutir, estava cansada, polida, mal tratada, com o rosto indiscutivelmente traindo a minha beleza jovial daqueles tempos, pouco me importava se tivesse outra, outro, se tivesse tido qualquer coisa que pudesse ter sido maior do que nós tivéssemos tido, tanto fazia, tanto fazia, eu apenas o abracei, dei um beijo na boca, e desmaiei. Falta de comida, e uma grande quantidade de cigarro num curto espaço de tempo. Ele me deixou dormir, disse ele. Acordei com a luz da madrugada, - um dia ainda quebro a luz desse poste. Pensei. A boca seca com gosto de alguma coisa nojenta, ainda estava enjoada, corri para o banheiro e vomitei café com licor de losna, - meu café da manhã, falei, esquecendo que havia alguém em casa. Voltei para o quarto tremendo, ele me esperava lá com um remédio e um copo de água, mais uma fatia de pão – remédio de estomago vazio não é uma boa combinação, falou ele. Comi o pão, tomei o remédio com a água que tinha gosto de cloro, tinha gosto de piscina, sabe? Falei isso, mas acho que ele não escutou, acho que nem eu mesma escutei. Não falei mais nada. Não tinha o que falar, meu estado louco, depressivo, rebelde, de menina mimada que quer ser cuidada mas não aceita os cuidados de ninguém, falava tudo. Tudo. Eu não sabia de mais nada. Ele me aconchegou no seu colo, fazendo meu corpo esquentar, eu tremia, ele cantava Chico Buarque “... não, não fuja não, finja que agora eu era o seu brinquedo, era o seu pião, o seu bicho preferido...” E eu me perguntava, - o que é que a vida vai fazer de mim? O que? O que? Ele continuava a cantar. A música respondia.

O gato me acordou, miando, e antes que alguma coisa pudesse acontecer, mandei trocar a fechadura, e fui embora.

O sol sumia por entre as nuvens, e eu lembrei do cheiro de bolo de fubá da minha avó, misturado com o cheiro das hortênsias do quintal da casa dos meus pais, e minhas pernas, fracas do tempo perdido, voltaram-se até onde eu podia ver o inicio do rio, tornaram-se fortes, feito cavalo galopante, corri e me joguei nas águas turvas, sorrindo. Longe, podia ver minha mãe, com a toalha branca nas mãos, chamando meu nome.





Santa Maria, 19 de maio de 2010.






Mariana Moro da Silva

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